Em novembro passado, fui à casa de meu tio Ariano: ele se recuperava
devagar dos enfartos e do AVC que o tinham vitimado alguns meses antes. Toda
cheia de dedos, com medo de incomodá-lo, levei-lhe de presente os meus poemas
que acabavam de ser publicados. Ele deve ter entendido o gesto: aquilo era o
resumo do melhor que eu pude fazer com o que ele mesmo me deu.
Não sei direito se consegui dizer a ele o quanto o amei; provavelmente
não, que as palavras são sempre insuficientes para essas coisas do amor... Mas
esse relato é uma tentativa de guardar e partilhar aquelas horas. E de dizer a
ele o que faltou. Certamente, ele agora compreenderá.
Ele estava deitado na cama, e eu sentei numa cadeira a seu lado,
tentando tirar de dentro de mim a maior doçura já existida. Francamente, não
sou capaz de relatar com objetividade o que se passou entre nós; lembro que ele
falou de tia Zélia, sua esposa; disse que a achou linda desde que a viu pela
primeira vez. Confessou que pensou em casar com ela naquele momento, mas
imaginou que ela não ia querê-lo. Brincando, acrescentou que tinha tido um
trunfo formidável na vida: ela tinha mau gosto... Continuou fazendo graça,
dizendo que sua doença tinha dado a ele duas coisas boas: estava tendo vida de
príncipe, pois todos o privilegiavam em tudo agora e obtivera a certeza de que
iria morrer de repente e não de uma longa e dolorosa doença.
Depois ele mesmo perguntou sobre a “nossa fazenda”, e eu contei a ele
que eu, meu irmão Alberto e Joaquim, seu filho mais velho, tínhamos este
patrimônio maravilhoso desde pequenos: ele se chamava “Três irmãos” e era a
mais fantástica propriedade que se pode ter. Contei-lhe que passamos horas e
horas de nossa infância e juventude planejando como ela seria. Até hoje, quando
eu e Alberto vemos uma casa linda, sonhamos em deslocá-la de seu canto para a
nossa fazenda, por meio de mirabolantes tratores, que a reposicionariam no alto
de uma colina inenarrável de perfeita que existe nas nossas terras. Outro dia,
Alberto falou com Renata, a namorada de meu filho Daniel, que é arquiteta,
sobre a transferência, para a nossa fazenda, de um sobrado que existe não sei
onde, e ela deu uma explicação sobre a falta de propriedade de tal empresa,
pois uma fazenda tem espaço e, portanto, sua casa não precisa ser estreita como
um sobrado, que pertence ao universo urbano. Alberto desconcertou-se:
– Será possível
– ele disse – que uma pessoa não pode ficar sonhando que vem logo um e acorda?!
Ariano achou
graça e entendeu perfeitamente por que nunca a compramos...
Mais ou menos
por aí, contei-lhe uma história que aconteceu comigo e minha irmã Débora:
– Queria tanto
poder me aposentar e ficar a vida toda só escrevendo... – eu disse, desanimada,
um dia desses a ela.
Débora nada
retrucou de volta. No dia seguinte, porém, quando nos encontramos, ela me
disse:
– Ô, mulher, tu
estás aprendendo com quem essa história de parar de trabalhar para escrever? É
com tio Ariano, é?
Eu disse a ele que
fiquei calada, pois não tinha o que dizer...
E tio Ariano
exclamou:
– Ô, minha
querida, desculpe pela maldição que te deixei...
Eu fiz que “não” com a cabeça enquanto sorria.
Então, não sei
bem em que momento, terminei por dizer a ele que “A pena e a lei” era minha
peça preferida:
–
Ela não é tão fácil como o “Auto da Compadecida” – eu lhe disse – mas é mais
profunda...
E
comecei a argumentar: que era linda a ideia de fazer os personagens parecerem
bonecos quando, no primeiro ato, passavam pela vida material; e um pouco
bonecos e um pouco pessoas, no segundo ato, quando se aproximavam da morte...
E, por fim, no terceiro ato, quando morriam, viravam pessoas de verdade, pois,
enfim, tinham encontrado sua verdadeira natureza...
Quando terminei a minha justificativa, ele disse, humilde:
–
Obrigado, minha filha. Sua opinião tem valia...
Eu tentei retribuir com um sorriso doce...
Aí chegou a hora do almoço, e me despedi entregando-lhe o livro.
Depois daquele
dia, não o vi mais; aliás, eu o via pouco. Sua herança é toda feita de livros,
afetos e lonjuras, tudo guiado por mansa e respeitosa bússola, que trago tão
bem guardada dentro de mim, que um dia, um aluno meu foi ver uma palestra de
Ariano e me disse na volta:
– Você parece
com ele por dentro e por fora...
“É mesmo”, eu
reparei...
E resgatei, por
meio de lembranças e relatos familiares, a importância dos tios, que fizeram as
vezes do pai, quando foi preciso...
Meu tio Ariano foi,
como meu pai, seu irmão querido, um homem afortunado, porém veio mais cheio de
talentos. Isso costuma constituir um perigo – não para ele, que deu conta da
inexequível equação dos talentos. Sua vida inteira foi um trajeto de
aperfeiçoamento e de busca por respostas. De forma admirável, repartiu tudo que
estudou e aprendeu: facilitava, por meio da graça, conceitos complexos e dava
explicações compreensíveis para um número expressivo de ouvintes. Religioso,
sempre escreveu sobre pecados, perdões e esperanças. É verdade que nos fazia
rir de tudo isso. Mas, como alguns podem reparar, tirava o riso do desespero e
da dúvida.
Com a fé aflita que Ariano me ensinou, creio que a Compadecida o recebeu
de braços abertos e o encaminhou ao lugar bonito do Céu – a fazenda dos irmãos
– onde estão os justos que sofrem pelos outros, como ele... E onde se pode
conversar com Deus, que explica todos os enigmas e sara todas as aflições...
E, com as
palavras que ele mesmo me deu, posso afirmar: virou agora aquela pessoa de
verdade e encontrou-se consigo mesmo e com sua própria essência, sem as
dilacerações da vida material. E descansa, em paz, depois de uma vida completa,
de choro e riso, suas raízes de defesa.
Certamente, continuaremos próximos, pois há rotas
que vencem todas as distâncias. Tudo isso ele mesmo facilitou, pois conseguiu,
com a ferramenta de seu trabalho bonito, como poucos, multiplicar os talentos
que ganhou. Guardadas as proporções, agora é minha vez: sua maldição é só uma
pluma..
Último encontro (Flávia Suassuna)
Reviewed by Centro de Criação Galpão das Artes
on
09:02
Rating:
Nenhum comentário: