Noite de Histórias no Recife

Por Claudia Lins
Teatro, cantigas e brinquedos populares convidam a uma viagem pelos quintais da infância


Vendas nos olhos, aromas e sons, ajudam a recriar memórias afetivas da infância

É noite de quarta-feira, véspera da véspera do dia de São Pedro, uma data celebrada pelo povo nordestino com fogueiras, forró e muitos encontros. Do lado de fora do Teatro Joaquim Cardozo, no coração do Recife, chove sem parar e o pessoal do projeto Noite de Histórias teme que a chuva espante o público. Diz a lenda que chuva forte assim perto do aniversário do santo, é sinal de que lá em cima, no céu, está acontecendo uma grande faxina para receber os convidados da festa…
Verdade ou história de pescador, aqui em baixo, o mau tempo não conseguiu assustar a platéia. Aous poucos, vão chegando os grupos, animados para ouvir boas tramas.
Logo na entrada do Teatro, brinquedos populares saudavam os convidados. Os olhos das crianças brilhavam ao ver o colorido das petecas, dos manés-gostosos, bilboquês e das fitas entrelaçadas dos baragandãos…
Nem os adultos resistiram ao que viram e fizeram fila para brincar também. A verdade é que essa gente veio em busca não apenas de ouvir histórias, mas de compartilhar emoções distantes. Vieram para reviver lembranças de um tempo alegre e cheio de sonhos: o tempo de voltar a ser criança.

Cia Palavras Andarilhas: Carminha Moraes, Fátima Pinheiro e Lenice Gomes, equipe Noite de Histórias
Brincando nos quintais
E foi assim, embalados por cantigas e brincadeiras da trupe do Quintal, que gente de todas as idades, se permitiu vivenciar um reencontro com a parte mais lúdica de suas vidas: a infância.
“Fechem os olhos e sintam o aroma. Lembrem-se desse tempo feliz. Esse é o cheiro dos quintais da nossa infância”, anunciam os anfitriões da noite.
Gotas de alfazema sobre as mãos da platéia simbolizavam o passaporte para embarcar num túnel do tempo e seguir viagem pelo mundo das histórias afetivas.
Já confortáveis, no escurinho do teatro, mulheres, homens e meninos, os brincantes da leitura, aos poucos iam se entregando as surpresas sensoriais da noite, se aventurando por dinâmicas que despertam sentimentos e a imaginação.

Imaginando histórias ditadas pelos sentidos
Vendas nos olhos bloquearam a realidade e o que veio a seguir, não se pode traduzir em palavras.
Sons, aromas, gestos, recordações… Situações tiradas do baú das memórias para dar vida a novas e velhas histórias.
Ao abrir os olhos, cada um é convidado a contar o que viu, ouviu, o que sentiu. E as narrativas dessa viagem particular aos recantos das próprias histórias soam como uma orquestra de ritmos coloridos e diversos.
Aviões sobrevoando nuvens de mosquitos, aventureiros desbravando perigos na noite… Cada um contou o que sentiu, ou simplesmente agradeceu pelo prazer de mergulhar na história que a própria mente criou.
“Muito bom, divertido e sensacional. Quero voltar aqui muitas outras vezes”, disse o menino Jefferson Lucas, de 10 anos, empolgado com a experiência vivida no palco . Ele e outras crianças da Biblioteca Comunitária Caranguejo Tabaiares, na Ilha do Retiro, integravam a platéia do último Noite de Histórias, dia 27 de julho.
“Voltei aos quintais de quando era menina, com conversas ao redor das fogueiras, florestas cheias de bichos misteriosos”, descreve outra participante da experiência sensorial.

A escritora Lenice Gomes compartilhando memórias de sua infância
A vida sem o lúdico, o que seria?
Compartilhando com o público lembranças dos quintais de sua infância, a escritora pernambucana Lenice Gomes cantou trava-línguas, dançou coco de roda e espalhou tangolangomangos pelo ar…
“Sem o lúdico, a vida seria muito vazia”, brinca a mestre em embaralhar palavras divertidas, carregadas de sentimentos e da vivacidade da cultura popular.
Cia das Palavras Andarilhas e Noite de Histórias
Movimento literário e teatral, idealizado pela pernambucana Lenice Gomes, o Noite de Histórias surgiu há três anos e conta com a parceria da Universidade Federal de Pernambuco, que cede o Teatro Joaquim Cardozo para a realização das sessões de contação de histórias, uma vez por mês. As apresentações são gratuitas e abertas a gente de todas as idades.
Tudo começou por ousadia de Lenice, uma apaixonada pelo universo do teatro e da literatura: “As noites de histórias surgiram de conversas, de cochichos, do sonho de unir teatro e literatura no palco do Joaquim Cardozo. O projeto cresceu, a equipe aumentou e aqui estamos”.
Hoje Lenice conta com uma trupe que sonha junto. Gente como Fátima Pinheiro, médica e contadora, que coordena o projeto Arte Mais e a contadora de histórias Carminha Moraes. A Cia de Palavras Andarilhas é integrada ainda por outros contadores e profissionais unidos pelo encantamento de promover histórias.
Educadores, atores, estudantes universitários e crianças, o público do Noite de Histórias é tão diverso quanto os temas de cada sessão. E cada noite é uma surpresa, que os organizadores só divulgam próximo a data de realização do evento.

Cantigas e coco de roda embalaram a noite
Um olhar lúdico sobre o Quintal
Dessa vez, os convidados para icendiar a noite com histórias, foram o ator Charlon Cabral e a trupe do Ponto de Cultura de Limoeiro, cidade do interior de Pernambuco, onde é desenvolvido o projeto “Um Olhar lúdico sobre o Quintal”.
A iniciativa surgiu de uma colônia de férias, com 30 crianças do Galpão do Ponto de Cultura do município e já percorreu as cidades de Feira de Santana, na Bahia, Aracati, no Ceará, e agora Recife, capital de Pernambuco.
Nossa ideia é provocar as pessoas a pensarem nos quintais de sua infância, que brinquem, imaginem e se divirtam”, convida Charlon.
Para a noite do Joaquim Cardozo, o grupo de Limoeiro trouxe o colorido de lenços e objetos inanimados, num cenário propositadamente criado para sacudir a imaginação. A platéia desenhou, imaginou e dançou histórias ao som da trupe. Na pisada do coco de roda,  ao ritmo do pandeiro encantado de Marcos, atores e público se misturaram transformando a contação numa grande e divertida brincadeira de criança.
A noite terminou com gostinho de quero mais, como aliás, terminam todas as boas histórias, que nos parecem despertar para um querer sem fim. E a gente daquela platéia, aquecida pela alegria de tantas memórias afetivas, nem se lembrou da chuva fria que caía lá fora. Em nossas melhores lembranças restou o calor da cultura popular, crepitando como inesquecível encontro ao redor das fogueiras de São Pedro, já acesas em nossos corações, bem antes do aniversário do santo.
E tudo que contei aqui, não foi história de pescador!

Crianças da Biblioteca Comunitária Caranguejo Tabaiares
Reviewed by Centro de Criação Galpão das Artes on 05:31 Rating: 5

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